O mimimi do milho na cerveja - até
quando?
POR MARCIO BECK
Foto |
Comparação visual dos ingredientes das cervejas industriais e artesanais ganhou
as redes sociais. Foto: Cervejaria Escola Sinnatrah
Tentei não falar nada a respeito.
Juro que tentei. Mas todo dia nas comunidades cervejeiras online é a mesma
coisa. Dezenas de posts exaltando cervejas por não terem milho em sua
composição, e - na melhor das hipóteses - fazendo piadas com as que têm. Na pior
das hipóteses, o que se vê é uma espécie de discurso de ódio mesmo. O milho foi
eleito pelos neo-cruzados da pureza cervejeira como o símbolo do que existe de
errado com a cerveja. O arroz às vezes é mencionado, mas não se tornou tão
icônico. Passou a ser cool falar mal dos tais "cereais não-maltados"
que a indústria cervejeira coloca marotamente no rótulo, mesmo sem ser capaz de
explicar tecnicamente o que eles trariam de ruim para a cerveja.
Por um motivo muito simples: o milho,
ou qualquer outro cereal não-maltado, não traz nada de ruim à cerveja. Repito:
nada. A única coisa que ele faz na cerveja, de fato, é fornecer açúcar para ser
transformado em álcool sem adicionar o mesmo conteúdo de proteínas da cevada, o
que torna o produto final mais leve - e obviamente, com menos gosto de cevada.
É uma verdade dura, mas que todo cervejeiro honesto aceita: cerveja "puro
malte" não é necessariamente boa e cerveja com cereal não maltado não é
necessariamente ruim.
O neo-cruzado da pureza cervejeira
geralmente reage com uma frase de efeito com a qual espera encerrar o assunto:
"Cerveja de verdade é água, malte de cevada, lúpulo e levedura". Esta
e suas variações constituem um pseudo argumento que ecoa a lei bávara de 1516,
que quatro séculos depois de ser criada se tornou conhecida como "exigência
de pureza" (Reinheitsgebot). Pelo que se sabe atualmente, não teve nada a
ver com preocupação com a qualidade da cerveja (como já expliquei aqui), mas sim com
controle de preços, taxação de matérias-primas e uma disputa política local.
O ser humano - detesto ficar
repetitivo, já comentei algumas vezes, mas parece que é difícil entrar na
cabeça das pessoas - vem fazendo cervejas há pelo menos 5.500 anos, de acordo
com arqueólogos especializados em bebidas fermentadas, e a cevada nunca foi a
única fonte de açúcares utilizada para sua produção (trigo, arroz, sorgo,
milhete e outros compõem a lista). Só nos últimos 500 essa lei passou a vigorar
numa região bem específica da Europa, mas infelizmente acabou se tornando um
fetiche moderno e uma ferramenta de marketing das cervejarias alemãs. Se a
questão for tradição e antiguidade, o uso de mel e frutas (presentes nas
evidências químicas mais antigas de bebida fermentada conhecida atualmente)
deveria ser obrigatório hoje em dia.
ORIGENS PRIMITIVAS
O vestígio mais antigo de bebida
fermentada encontrada por arqueólogos, na China, datada de 7000 a.C, continha
arroz, mel e frutas. Séculos antes da chegada dos europeus, os andinos já
produziam uma cerveja de milho, a chicha. Nos EUA, os primeiros
colonos a aportarem no Nordeste americano recorreram quase imediatamente ao
milho cultivado pelos índios para produzir suas cervejas, diante da ausência de
um suprimento de malte suprido pela metrópole, e ficaram muito satisfeitos com
os resultados como mostram trechos de seus diários. Os imigrantes alemães
recorreram ao milho no século 19 para reduzir a turbidez das suas cervejas e
vendê-las mais caras (sim, mais caras!) que as de cevada pura. Então, se for
por tradição... as "cervejinhas de milho e arroz" têm bastante
tradição e chamá-las assim de forma pejorativa não tem muito sentido.
A realidade moderna inegável é que
muitas cervejarias tradicionais reconhecidas internacionalmente pela qualidade
usam esse tipo de recurso em seus produtos. Diante disto, a resposta costuma ser
a de que estas cervejarias, entre as quais se destacam várias belgas
consagradas, não o fazem na mesma proporção que as macrocervejarias. Aí, vemos
que o argumento já cedeu um pouco. O milho, que era vilão, já passa a ser
aceitável, desde que seja para "acrescentar uma característica", e
não "para baratear, como as grandes fazem".
Só que o viés econômico não é o único
motivo da opção da indústria pelos cereais não-maltados e pela redução da
porção de lúpulo - fator que os milhofóbicos geralmente ignoram, mas que também
contribui para as diferenças significativas entre as industriais e artesanais.
O objetivo de neutralizar o sabor da bebida para atingir o maior público
possível, coisa que os neo-cruzados insistem em ignorar, não pode ser de forma
alguma menosprezado por quem busca compreender o mercado. Foi um movimento
mundial que começou há cerca de 40 anos, como identificou um estudo sobre o qual escrevi a respeito
em 2013.
A estratégia, de certa maneira, foi
muito bem sucedida no Brasil. De 1960 a 2010, a produção de cerveja no país
teve o maior crescimento na comparação com as maiores nações cervejeiras do
mundo. Nesse período, segundo dados que compilei dos relatórios anuais do grupo
Barth Haas, a produção dos EUA pouco mais que dobrou (10,9 bilhões de litros
para 22,7 bilhões), a da Bélgica cresceu cerca de 40% (de 1,3 bilhões para 1,8
bilhões), a da Alemanha, menos de 30% (7,1 bilhões para 9,6 bilhões), e a da
Grã-Bretanha, menos de 10% (4,1 bilhões para 4,5 bilhões).
Já a produção brasileira
cresceu QUASE 20 VEZES, passando de "míseros" 750 milhões
de litros para 12,8 bilhões, que colocaram o país no terceiro lugar do ranking
lugar mundial, atrás apenas de China e EUA. É um aumento, diga-se de passagem,
que não pode ser atribuído ao crescimento vegetativo da população, que pouco
mais que dobrou neste período. Pessoas que não bebiam cerveja "porque é
amarga", como apontavam as pesquisas das cervejarias, deixaram de ter
argumento, e o mercado prosperou.
Ainda concordo parcialmente com o
argumento do mestre cervejeiro Garrett Oliver de que a comida
industrializada é uma espécie de simulacro. Só que isso se deve a todo um
conjunto de práticas de produção industrial, e não ao uso do milho em si. E é
assunto para outro texto.
RECURSOS MODERNOS
Nada disso significa, obviamente, que
a indústria cervejeira não deveria mencionar claramente no rótulo, sem recorrer
ao artifício dos "cereais não-malteados", o que está de fato sendo
colocado na cerveja, e em que proporções, já que a legislação brasileira impõe
um limite de 45% no uso destes outros cereais. É uma questão básica de respeito
ao consumidor.
A transformação pela qual passou a
produção industrial da bebida não veio sem um preço, claro, como também já mostrei: a estratégia de
suavização dos sabores e aromas foi tão eficaz que hoje mesmo os especialistas
na bebida têm dificuldades para distinguir as principais marcas em testes
cegos, e as cervejarias sofrem com o problema da falsificação de rótulos. Outro
alto preço é a exploração, por parte dos cervejeiros artesanais, desta falta de
personalidade das grandes marcas. Ou seja, as "louras geladas"
industriais se prestam muito bem ao papel que propõem. Não é a toa que é comum
superarem muitas artesanais nas categorias que disputam em campeonatos
cervejeiros.
O problema é que elas não propõem
muita coisa além de uma refrescada e uma porçãozinha de álcool. A cerveja
neutra, que é para todos, ao mesmo tempo, é para ninguém em especial; os novos
empresários do ramo nesta moderna onda artesanal oferecem justamente produtos
para bebedores com preferências bem definidas, que se importam mais
profundamente com a cerveja e querem grandes explosões de aromas e sabores. Que
bom. Mas é preciso lembrar que nem todos são assim, nem querem ser assim. E o
discurso de superioridade dos apreciadores de cervejas artesanais já ultrapassou
as raias da arrogância e está se tornando um fator que afasta as pessoas desse
meio.
Enfim, é hora de repensar a atitude.
Que tal parar de patrulhar o copo alheio? Beba o que você gosta, e deixe os
outros beberem o que gostam, também.
A comunidade cervejeira só tem a
ganhar.
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