quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Santa cerveja!!

O mimimi do milho na cerveja - até quando?
POR MARCIO BECK










Foto | Comparação visual dos ingredientes das cervejas industriais e artesanais ganhou as redes sociais. Foto: Cervejaria Escola Sinnatrah





 Tentei não falar nada a respeito. Juro que tentei. Mas todo dia nas comunidades cervejeiras online é a mesma coisa. Dezenas de posts exaltando cervejas por não terem milho em sua composição, e - na melhor das hipóteses - fazendo piadas com as que têm. Na pior das hipóteses, o que se vê é uma espécie de discurso de ódio mesmo. O milho foi eleito pelos neo-cruzados da pureza cervejeira como o símbolo do que existe de errado com a cerveja. O arroz às vezes é mencionado, mas não se tornou tão icônico. Passou a ser cool falar mal dos tais "cereais não-maltados" que a indústria cervejeira coloca marotamente no rótulo, mesmo sem ser capaz de explicar tecnicamente o que eles trariam de ruim para a cerveja. 

Por um motivo muito simples: o milho, ou qualquer outro cereal não-maltado, não traz nada de ruim à cerveja. Repito: nada. A única coisa que ele faz na cerveja, de fato, é fornecer açúcar para ser transformado em álcool sem adicionar o mesmo conteúdo de proteínas da cevada, o que torna o produto final mais leve - e obviamente, com menos gosto de cevada. É uma verdade dura, mas que todo cervejeiro honesto aceita: cerveja "puro malte" não é necessariamente boa e cerveja com cereal não maltado não é necessariamente ruim. 

O neo-cruzado da pureza cervejeira geralmente reage com uma frase de efeito com a qual espera encerrar o assunto: "Cerveja de verdade é água, malte de cevada, lúpulo e levedura". Esta e suas variações constituem um pseudo argumento que ecoa a lei bávara de 1516, que quatro séculos depois de ser criada se tornou conhecida como "exigência de pureza" (Reinheitsgebot). Pelo que se sabe atualmente, não teve nada a ver com preocupação com a qualidade da cerveja (como já expliquei aqui), mas sim com controle de preços, taxação de matérias-primas e uma disputa política local.

O ser humano - detesto ficar repetitivo, já comentei algumas vezes, mas parece que é difícil entrar na cabeça das pessoas - vem fazendo cervejas há pelo menos 5.500 anos, de acordo com arqueólogos especializados em bebidas fermentadas, e a cevada nunca foi a única fonte de açúcares utilizada para sua produção (trigo, arroz, sorgo, milhete e outros compõem a lista). Só nos últimos 500 essa lei passou a vigorar numa região bem específica da Europa, mas infelizmente acabou se tornando um fetiche moderno e uma ferramenta de marketing das cervejarias alemãs. Se a questão for tradição e antiguidade, o uso de mel e frutas (presentes nas evidências químicas mais antigas de bebida fermentada conhecida atualmente) deveria ser obrigatório hoje em dia.

ORIGENS PRIMITIVAS

O vestígio mais antigo de bebida fermentada encontrada por arqueólogos, na China, datada de 7000 a.C, continha arroz, mel e frutas. Séculos antes da chegada dos europeus, os andinos já produziam uma cerveja de milho, a chicha. Nos EUA, os primeiros colonos a aportarem no Nordeste americano recorreram quase imediatamente ao milho cultivado pelos índios para produzir suas cervejas, diante da ausência de um suprimento de malte suprido pela metrópole, e ficaram muito satisfeitos com os resultados como mostram trechos de seus diários. Os imigrantes alemães recorreram ao milho no século 19 para reduzir a turbidez das suas cervejas e vendê-las mais caras (sim, mais caras!) que as de cevada pura. Então, se for por tradição... as "cervejinhas de milho e arroz" têm bastante tradição e chamá-las assim de forma pejorativa não tem muito sentido.

A realidade moderna inegável é que muitas cervejarias tradicionais reconhecidas internacionalmente pela qualidade usam esse tipo de recurso em seus produtos. Diante disto, a resposta costuma ser a de que estas cervejarias, entre as quais se destacam várias belgas consagradas, não o fazem na mesma proporção que as macrocervejarias. Aí, vemos que o argumento já cedeu um pouco. O milho, que era vilão, já passa a ser aceitável, desde que seja para "acrescentar uma característica", e não "para baratear, como as grandes fazem". 

Só que o viés econômico não é o único motivo da opção da indústria pelos cereais não-maltados e pela redução da porção de lúpulo - fator que os milhofóbicos geralmente ignoram, mas que também contribui para as diferenças significativas entre as industriais e artesanais. O objetivo de neutralizar o sabor da bebida para atingir o maior público possível, coisa que os neo-cruzados insistem em ignorar, não pode ser de forma alguma menosprezado por quem busca compreender o mercado. Foi um movimento mundial que começou há cerca de 40 anos, como identificou um estudo sobre o qual escrevi a respeito em 2013.

A estratégia, de certa maneira, foi muito bem sucedida no Brasil. De 1960 a 2010, a produção de cerveja no país teve o maior crescimento na comparação com as maiores nações cervejeiras do mundo. Nesse período, segundo dados que compilei dos relatórios anuais do grupo Barth Haas, a produção dos EUA pouco mais que dobrou (10,9 bilhões de litros para 22,7 bilhões), a da Bélgica cresceu cerca de 40% (de 1,3 bilhões para 1,8 bilhões), a da Alemanha, menos de 30% (7,1 bilhões para 9,6 bilhões), e a da Grã-Bretanha, menos de 10% (4,1 bilhões para 4,5 bilhões). 

Já a produção brasileira cresceu QUASE 20 VEZES, passando de "míseros" 750 milhões de litros para 12,8 bilhões, que colocaram o país no terceiro lugar do ranking lugar mundial, atrás apenas de China e EUA. É um aumento, diga-se de passagem, que não pode ser atribuído ao crescimento vegetativo da população, que pouco mais que dobrou neste período. Pessoas que não bebiam cerveja "porque é amarga", como apontavam as pesquisas das cervejarias, deixaram de ter argumento, e o mercado prosperou. 

Ainda concordo parcialmente com o argumento do mestre cervejeiro Garrett Oliver de que a comida industrializada é uma espécie de simulacro. Só que isso se deve a todo um conjunto de práticas de produção industrial, e não ao uso do milho em si. E é assunto para outro texto.

RECURSOS MODERNOS

Nada disso significa, obviamente, que a indústria cervejeira não deveria mencionar claramente no rótulo, sem recorrer ao artifício dos "cereais não-malteados", o que está de fato sendo colocado na cerveja, e em que proporções, já que a legislação brasileira impõe um limite de 45% no uso destes outros cereais. É uma questão básica de respeito ao consumidor. 

A transformação pela qual passou a produção industrial da bebida não veio sem um preço, claro, como também já mostrei: a estratégia de suavização dos sabores e aromas foi tão eficaz que hoje mesmo os especialistas na bebida têm dificuldades para distinguir as principais marcas em testes cegos, e as cervejarias sofrem com o problema da falsificação de rótulos. Outro alto preço é a exploração, por parte dos cervejeiros artesanais, desta falta de personalidade das grandes marcas. Ou seja, as "louras geladas" industriais se prestam muito bem ao papel que propõem. Não é a toa que é comum superarem muitas artesanais nas categorias que disputam em campeonatos cervejeiros.

O problema é que elas não propõem muita coisa além de uma refrescada e uma porçãozinha de álcool. A cerveja neutra, que é para todos, ao mesmo tempo, é para ninguém em especial; os novos empresários do ramo nesta moderna onda artesanal oferecem justamente produtos para bebedores com preferências bem definidas, que se importam mais profundamente com a cerveja e querem grandes explosões de aromas e sabores. Que bom. Mas é preciso lembrar que nem todos são assim, nem querem ser assim. E o discurso de superioridade dos apreciadores de cervejas artesanais já ultrapassou as raias da arrogância e está se tornando um fator que afasta as pessoas desse meio. 

Enfim, é hora de repensar a atitude. Que tal parar de patrulhar o copo alheio? Beba o que você gosta, e deixe os outros beberem o que gostam, também. 

A comunidade cervejeira só tem a ganhar. 


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